quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

sábado, 4 de abril de 2009

Capítulo 1

Com a calça de couro preta colada às pernas magras e a camisa branca de pirata empapada de suor, Fritz the Cat entoava os versos do último número da noite, já no bis. Era uma canção bacana, marcada por um baixo até certo ponto alegre, que contrastava com o clima sombrio da letra. Uma mistura um tanto improvável de Ce mortel ennui, de Serge Gainsbourg, Sing me to sleep, dos Smiths, e The end, do The doors. O palco fora instalado na rua, bem em frente ao Trauma, um dos bares mais freqüentados por punks, darks e afins de Belo Horizonte, em determinado período dos anos 80.

Renato Morcegão estava bastante bêbado, mas não a ponto de ficar imune ao desespero que emanava dos movimentos andróginos e cheios de pantomimas daquele maluco com o microfone. Fritz the Cat, o cara! Morcegão quase chorava, se deliciando com a mistura entorpecente de sons. Conforme definição do próprio Fritz, os acordes e as letras da banda eram pra fazer as pessoas inteligentes suspirarem – por inteligentes, ele queria dizer depressivas – e, por outro lado, deixar bastante incomodados os pobres de espírito – no geral, ainda segundo ele, quem gostava “de pop, new wave e música baiana, porque samba, não, samba é cool”.

Morcegão estava hipnotizado pelo swing caótico da banda Cai o pano e pelos inimagináveis trejeitos gainsbourg-morrisey-morrisonianos do vocalista, em sua música derradeira, quando Tina Siouxsie se aproximou.

- Vamos fumar um baseado e depois seguimos pra festa do Rimbalde. Você vem? – ela disse, com os lábios de batom negro grudados no lóbulo da orelha esquerda de Morcegão.

- Porra, eu estou aqui curtindo o som desses caras, percebe? – ele sempre soltava um “percebe?” no final das frases. – Essa música é genial! E maconha é coisa de hippie, percebe? – completou, espantando Tina.

Fumo de tabaco rói o ar, Maiakóvski said.

Que um tumor de pulmão me liberte!

I smoke a lot, yeah, and I wanna be dead.

O refrão, entremeado pelo baixo ainda saltitante, ganhava mais emoção ”sob os auspícios da guitarra sincopada, mas tonitruante” – para usar as palavras de um dos críticos musicais locais mais descoladinhos da época – do malucão Billy Jack Ibañez.

Dez anos depois, nos anos 90, Billy Jack Ibañez, que se chamava na verdade Rosalves, mas mudara o nome pra prestar homenagem ao filme de que mais gostava – um sobre um boinaverde expert em kung fu e muito doidão que batia em um monte de rednecks, nos EUA –, e à marca do instrumento que tocava, faria sucesso em outra banda. Um som pop, de nítidas influências new wave e, embora esse ponto fosse controverso, até com certa bossanovisse acrescida de uma mineiridade clubedaesquineana permeando as canções. Isso deixaria Fritz e muitos ex-fãs furiosos, enquanto outros, mais novos, o aplaudiriam como loucos.

Fato é que, na época, todos os outsiders e undergrounds de BH o amavam. “Se Clapton é Deus, esse cara é o demônio!”, diziam.

Morcegão aplaudiu ferozmente a Cai o pano após o último acorde, dando pulos pra olhar, sobre as cabeças da pequena multidão concentrada mais perto do palco, o que parecia ser um ataque epilético de Fritz the Cat. Ao melhor estilo iancurtisiano, ele sempre tinha convulsões, estrebuchava-se e rolava pelo chão no encerramento dos shows. Não era novidade, mas a cena era imperdível.

Tina Siouxsie, acompanhada de um pequeno bando de “urubus”, garotos e garotas apelidados assim pela maioria das pessoas por vestir-se sempre com casacos pretos, calçar coturnos desconfortáveis e usar pesadas maquiagens em tom noir, passou novamente por Morcegão.

- Então, vamos nessa? – ela perguntou

- Ocá – ele disse, conformado.